sábado, 16 de janeiro de 2010

A Lip e o movimento trabalhista francês

Reconhecida entre os entusiastas por seu design de vanguarda, a Lip é uma das marcas mais famosas e tradicionais da relojoaria francesa.

Fundada em 1893, em Besançon, maior centro relojoeiro da França, a Société Anonyme d'Horlogerie Lipmann Frères foi pioneira na manufatura industrial de relógios em território francês e também no desenvolvimento dos relógios elétricos, eletrônicos e quartzo em nível mundial.

Porém, apesar de toda a competência no que fazia, a história da Lip ficou mesmo marcada por outros motivos: a luta de seus funcionários contra a falência da empresa. Uma verdadeira batalha, que envolveu greves, piquetes, seqüestro de pessoas e materiais e até uma autogestão perpetrada pelos próprios trabalhadores. Tal saga mexeu com toda a França e chegou a ser tema de um documentário de cinema!

Nos anos 60, a Lip andava mal das pernas financeiramente: era uma companhia altamente especializada, que dependia de mão-de-obra qualificada, mas sofria pela gestão arcaica e paternalista (comum à França na época). Em 1964, Fred Lipmann, seu proprietário e diretor, abriu o capital, a fim de levantar fundos; oportunidade na qual a Ébauches S/A adquiriu 33% da empresa.

Durante o Maio de 68, assim como milhões de trabalhadores de todo o país os funcionários da Lip também aderiram à greve geral. Esta breve insurreição marcou profundamente os operários da empresa, que passaram a exigir melhores condições de trabalho.

Esta situação enfraqueceu ainda mais as finanças da companhia, levando a Ébauches S/A, então sua maior acionista, com 43% das ações, a demitir 1.300 funcionários. Um terrível golpe na moral dos trabalhadores.

No ano seguinte, por uma decisão dos acionistas, foi a vez de Fred Lipmann ir para o olho da rua.

Em 1973, a Lip finalmente lançara seu primeiro movimento quartzo (e também primeiro movimento quartzo francês), mas a intensa competição dos norte-americanos, japoneses e suíços esgotaram toda a capacidade da empresa: em 17 de abril, a companhia deu início às formalidades necessárias para sua liquidação.

Aí começam os episódios que tornaram a história da marca tão singular: os operários da fábrica, orientados por lideranças sindicais, se organizaram e simplesmente não permitiram o fechamento da empresa!

A experiência de 73

Em 12 de junho de 1973, por um mero acaso do destino, um dos empregados descobriu um plano secreto do conselho diretor para a demissão em massa de centenas de operários e corte de departamentos, o que revoltou os trabalhadores. No mesmo dia, os revoltosos, liderados pelo gerente de operações da empresa, Charles Piaget, tomaram o controle da empresa e retiveram dois diretores e um fiscal do trabalho como reféns. Um destacamento da força de elite da polícia francesa teve de entrar em ação para efetuar o resgate!

Mas os operários não se deram por vencidos: perderam seus reféns humanos mas fizeram reféns máquinas, equipamentos e, o mais importante, todo o estoque de peças e relógios prontos da companhia e seus projetos, totalizando 65 mil unidades, que foram escondidos em diversos lugares longe dali.

A ocupação da fábrica continuou por noite e dia, enquanto representantes governamentais tentaram negociar o fim da ocupação. No entanto, em 15 de junho, cerca de 12 mil pessoas (o que era uma enormidade de gente para uma cidade do tamanho de Besançon) realizaram uma manifestação de apoio aos operários, que então decidiram não só ficar na fábrica, como tocá-la eles próprios sem um empregador!

A fim de levantar capital para o recomeço das operações, os funcionários organizaram a venda do estoque que havia sido escondido, e em seis semanas venderam metade do que normalmente a empresa comercializaria em um ano! Todos se entusiasmaram, a ponto de até mesmo desenvolverem um slogan: C'est possible: on fabrique, on vend, on se paie! (É possível: nós os fabricamos, nós os vendemos, nós nos pagamos!)

O sonho não durou muito tempo, porém. No começo de agosto, tropas militares foram chamadas para tomar a fábrica a força e expulsar os grevistas.

A violência desta retomada levou diversas indústrias de Besançon e região a iniciarem uma paralisação, que, por fim, culminou numa manifestação que reuniu mais de 100 mil pessoas e foi notícia em todo o país.

Recomeço e punição

A publicidade e pressão gerada por esta manifestação, apelidada à época de marche des 100.000, forçou a classe empresária e o governo a arranjar uma solução para o conflito.

A Lip foi adquirida pelo conglomerado BSN, e teve um administrador nomeado, Claude Neuschwander. Os empregados outrora demitidos foram reintegrados aos seus postos de trabalho e a greve finalmente acabou. Ainda, a nova administração conseguiu negociar com o governo uma moratória para suas dívidas fiscais e com fornecedores. Parecia que tudo estava resolvido, enfim! Ledo engano...

Em maio de 74, a França elegeu um novo presidente, Valéry Giscard d'Estaing, que considerava o levante organizado pelos operários um abuso que não poderia ficar sem punição, sob risco de abrir um precedente perigoso.

Como reprimenda, ao longo de seu mandato, Giscard determinou o cancelamento de todas as encomendas da Renault ‒ então uma empresa estatal ‒ junto à Lip, o que por si só foi um belo baque, já que a fabricante de automóveis era a maior cliente da empresa. Ademais, o Tribunal de Comércio cancelou a moratória negociada e exigiu o pagamento de 6 milhões de francos devidos à fornecedores.

No começo de 1976, a Lip novamente encontrara a falência... Mas novamente os operários não deixaram que fosse assim tão fácil!

Em maio de 76, os empregados novamente retomaram a produção da fábrica, porém desta vez eles não arregimentaram nenhum suporte, nem de empresas, nem da sociedade.

Sozinha, a Lip finalmente foi declarada falida em 12 de setembro de 1977.

Pós-falência

Após a liquidação da empresa, alguns funcionários organizaram-se em cooperativas de produção, que acabaram por ser adquiridas em 1984 por uma empresa chamada Kiplé.

Seis anos depois, a marca foi comprada pelo investidor Jean-Claude Sensemat, que a relançou em 1992 e a manteve no mercado até 2002, quando repassou à MGH (La Manufacture Générale Horlogère), que hoje detém os direitos de produção e produz os icônicos relógios da marca com a tecnologia atual.

lip_modern

Fontes

http://www.watchismo.com/about-lip-watch.aspx

http://en.wikipedia.org/wiki/LIP_(clockwork_company)

http://fr.wikipedia.org/wiki/Lip

http://people.timezone.com/msandler/Articles/DownesLip/Lip.html

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